Pouco movimento na feira... Não sou freguesa constante no pedaço, mas o peixe estava bonito. Encostei na barraca e pedi em alto e bom som:
- Pesa cinco pescadas brancas destas, por favor.
O rapaz pega um peixe, dois, três, solta e pega outro, vai e pega dois, escolhe e pega mais e torna a trocar, mas vejo com total clareza que pesou seis. Considero que são pescadas pequenas e deixo passar o engano na contagem.
- Faz filé, por favor!
Quem compra seis pescadas, leva doze filés, não é mesmo? Pois em casa reparo que levei apenas dez. Paguei por seis, mas levei cinco pescadas. Ahr... ahr... Minha empregada não tem dúvidas e toma as minhas dores:
- Vai faltar terra na cova dele!
Relembro a cena e confirmo a preocupação do rapaz em ficar na frente da balança, na parte de trás da barraca. Onde normalmente compro, a balança fica na cara do cliente. Hoje faz uma semana e daqui a pouco devo ir até a barraca do especialista em aritmética para que de alguma forma ele saiba que eu sei. É o máximo que posso fazer além de não comprar a mercadoria dele. Entretanto, não posso deixar de pensar nas pequenas e grandes mentiras, na corrupção deslavada, nas calúnias, na atuação dos hackers na Internet, no nepotismo que deu emprego a muitos derrotados do partido vitorioso. E para coroar, temos os atentados internacionais, praticamente diários, o terror das guerras para controlar o terrorismo, o preço do petróleo à mercê dos magnatas, os transgênicos impedidos de acabar com a fome no mundo e, assim, liqüidar com um dos mais fortes argumentos em favor das campanhas contra a natalidade... E tantas outras façanhas... Às vezes por dinheiro, às vezes por vaidade.
Façanhas? Não estarei usando um vocábulo impróprio? Façanha é ato heróico, é proeza, é feito extraordinário... Posso, é claro, estar ironizando. Mas talvez não! Porque o peixeiro terá comemorado, o caluniador tudo o que quer é fazer alarde da calúnia, espalhá-la, os hackers festejam os estragos inimagináveis, cujo alcance nem eles conseguem prever. Aliás, os caluniadores também não conseguem prever os seus estragos. Isso sem falar nas línguas "mal mordidas": quem conta o milagre, mas não conta o santo, põe sob suspeita todos os santos...
Fica martelando a pergunta: quem vai controlar isso? As "tele-telas" de George Orwel, no seu 1984? O peixeiro escaparia delas, tranqüilamente. E nem só o peixeiro, não é? Será que funcionam os sistemas de segurança nos aeroportos? Os radares? Os antitudo que são instalados nos computadores? Os detectores de explosivos? De mentiras? De falsas interpretações?
Socorro! O mundo hoje é veneno para todo lado... E, no entanto, a humanidade dispõe naturalmente de um recurso valioso, instalado na intimidade de cada um. Um comando inimitável que pode sensibilizar-se ou endurecer-se. No grande e no pequeno ataque, prima, como principal mentora, a sagrada senhora Consciência. É ela quem pode avaliar, inescrupulosamente: um peixe a mais, um peixe a menos... E é ela quem pode pôr o freio: Não vá faltar terra na minha cova!
*Sueli Caramello Uliano é professora universitária, com Mestrado em Literatura Portuguesa, pela USP. Publicou vários artigos sobre comportamento em diversos jornais especialmente no Espaço Aberto dO Estado de São Paulo, de 1994 a 1996. No momento, dedica-se especialmente a escrever ficção. É autora do livro Por um Novo Feminismo editado pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.
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